O Caderno Lilás de Karim Blair

quarta-feira, 9 de novembro de 2011


A foto veio pelo correio, num envelope pardo. Chegou logo depois da greve, quinta-feira, 27, muitos graus centígrados e eu só podia, então, olhar a cidade, ou um pedaço dela, pela janela. Em algum lugar alguém dedilhava, muito mal, trechos das canções líricas de Schubert, e ao fim de cada música as notas morriam como as luzes trêmulas de uma embarcação que se separa da costa. Pensei em Susan Sontag, no ônibus elétrico passando na rua detrás, nos doces da padaria Orquídea e na livraria japonesa que eu sempre hesito em entrar. Eu apenas fotografo a sua fachada e escada. Pensei também em meu cão castanho, na gaveta de incensos sabendo a nenúfares, e na tentativa de uma caligrafia perfeita. Data: 1927. Quase cem anos. Cursiva inglesa simplificada.

A foto estava pintada a mão, como se usava na época. Deixei o envelope pardo em cima da escrivaninha e fiquei um longo tempo olhando a foto, os nomes, a data, as rasuras, os impedimentos, o rosa desbotado da saia da menina loira que acariciava um cão. Sou eu? Sou um pouco dessas fotos perdidas, jogadas ao acaso nas tempestades, das embarcações que, sem que se perceba, separam-se da costa.

E por causa desses pensamentos, e do cão na foto, também pintado a mão, peguei uma taça de morangos com açúcar. Como na infância.