O Caderno Lilás de Karim Blair

sexta-feira, 25 de maio de 2012


(para Ivan Mantchev, na noite em que ele saiu de casa)

Chove. Às três da madrugada chove sobre mim, sobre você, sobre a ilha que te sustenta a veia e a vida. Chove inexplicavelmente sobre o sol e sobre o sal das nossas pequenas e anônimas circunstâncias. Sobre a nossa sombra na rua que tem uma subida e é feita de paralelepípedos. Sobre os cães que não tivemos, mas que chamamos alto, em outras madrugadas, assobiando ou gritando seus nomes. Chove sobre o aço do meu anel, que ganhei enquanto dormia e sobre a faca afiada que permaneceu na sua sala. E, ao final, ambas as coisas foram uma ilusão: anel e faca. Só existia mesmo a sua voz através do barulho da Ilha, as ondas relapsas, rebentando na costeira, a sua casa de palha e sinopses, a sua voz de areia e lapis-lazúli. Poderia ter sido na Polinésia, onde Valéry descansou em uma cadeira de espaldar alto, mas foi aqui. Para onde você foi, abandonando a avenida que te percorria e as luzes do centro da cidade que te marcavam o corpo, e onde eu fiquei, com as avenidas e luzes. Por isso chove aqui, agora, nesta madrugada de lobos perturbadores, gotas de absinto escorrendo do tinteiro e selos com o carimbo borrado em envelopes amarelados. Chove sobre a sua pressa e a minha permanência. Você saiu, esqueceu de trancar a porta e fechar as janelas. De desligar o celular e fechar sua conta de mail. De fazer uma última reverência a Oxóssi, de tirar a torradeira da tomada, e de empilhar pratos e garfos na pia da cozinha. Você saiu e saiu, e mais uma vez, saiu. Com aquele jeito de andar meio de lado e as mãos no bolso. Esqueceu a bicicleta, acho.