O Caderno Lilás de Karim Blair

domingo, 28 de abril de 2013

Nasci numa noite



Nasci numa noite de outono, uma noite de lua cheia, com um sinal na perna. Comia-se castanhas e nozes, bolo com glacê de limão, fumava-se charuto e havia um filme de Hitchcock no Marabá. Também postais de campos de lavanda, escadas que levavam a bazares, um gafanhoto andando pela sombra espessa da lua. Peça três coisas, ele me disse. Quero os olhos azuis-acinzentados, mãos longas e sardas. Minha avó pôs sua roupa mais bonita e veio me ver dias depois. Cresci à sombra da sua imagem, e cozi minha alma com tinta-da-china. Ainda hoje, no outono, eu quero apenas uma bruxinha feita de pano por ela, doce de figo em calda, torradas com manteiga à noite e uma rosa vermelha das manhãs de segunda-feira, que ela me dava quando eu ia embora, descendo três degraus no meio da névoa. Eu nunca devia ter ido embora. Levei os lapsos, as brumas, as carvoarias, os cílios, os assasssinos. Aquilo que segrega as gôndolas, aquilo que corrompe o córtex. Os faunos, as fatuidades, a lanterna mágica. E minha primeira palavra em italiano: arcobaleno. Eu devia ter ficado em sua casa, no último quarto, com minhas bruxinhas de pano e minha lagartixa. E com a rosa intacta na roseira.