Nasci numa noite
Nasci numa noite de outono, uma noite de lua cheia, com
um sinal na perna. Comia-se castanhas e nozes, bolo com glacê de limão, fumava-se
charuto e havia um filme de Hitchcock no Marabá. Também postais de campos de
lavanda, escadas que levavam a bazares, um
gafanhoto andando pela sombra espessa da lua. Peça três coisas, ele me disse.
Quero os olhos azuis-acinzentados, mãos longas e sardas. Minha avó pôs sua roupa
mais bonita e veio me ver dias depois. Cresci à sombra da sua imagem, e cozi minha
alma com tinta-da-china. Ainda hoje, no outono, eu quero apenas uma bruxinha feita
de pano por ela, doce de figo em calda, torradas com manteiga à noite e uma rosa
vermelha das manhãs de segunda-feira, que ela me dava quando eu ia embora,
descendo três degraus no meio da névoa. Eu nunca devia ter ido embora. Levei os
lapsos, as brumas, as carvoarias, os cílios, os assasssinos. Aquilo que segrega
as gôndolas, aquilo que corrompe o córtex. Os faunos, as fatuidades, a lanterna
mágica. E minha primeira palavra em italiano: arcobaleno. Eu devia ter ficado
em sua casa, no último quarto, com minhas bruxinhas de pano e minha lagartixa. E com a rosa intacta na roseira.