O Caderno Lilás de Karim Blair

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Um trem



Um trem na plataforma de uma pequena estação com cadeiras de palhinha na sala de espera. Preciso, atento aos horários, o sinaleiro mudando a cor sem pressa. Uma porteira de madeira fechando o acesso a carros e pedestres. Café e carícias. É outono, maio, as temperaturas descem a menos de 10 graus ao amanhecer. O pão sai quente do grande forno industrial, e da minha boca escorre um fiapo de manteiga. O sol cega as gaivotas e os argonautas.  Estou no nosso bar mais uma vez. Com meu tênis brando e minhas meias xadrezes.

domingo, 28 de abril de 2013

Nasci numa noite



Nasci numa noite de outono, uma noite de lua cheia, com um sinal na perna. Comia-se castanhas e nozes, bolo com glacê de limão, fumava-se charuto e havia um filme de Hitchcock no Marabá. Também postais de campos de lavanda, escadas que levavam a bazares, um gafanhoto andando pela sombra espessa da lua. Peça três coisas, ele me disse. Quero os olhos azuis-acinzentados, mãos longas e sardas. Minha avó pôs sua roupa mais bonita e veio me ver dias depois. Cresci à sombra da sua imagem, e cozi minha alma com tinta-da-china. Ainda hoje, no outono, eu quero apenas uma bruxinha feita de pano por ela, doce de figo em calda, torradas com manteiga à noite e uma rosa vermelha das manhãs de segunda-feira, que ela me dava quando eu ia embora, descendo três degraus no meio da névoa. Eu nunca devia ter ido embora. Levei os lapsos, as brumas, as carvoarias, os cílios, os assasssinos. Aquilo que segrega as gôndolas, aquilo que corrompe o córtex. Os faunos, as fatuidades, a lanterna mágica. E minha primeira palavra em italiano: arcobaleno. Eu devia ter ficado em sua casa, no último quarto, com minhas bruxinhas de pano e minha lagartixa. E com a rosa intacta na roseira.

terça-feira, 5 de março de 2013


Há uma esquina, na rua de cima, onde os destinos se confrontam, com alguma velocidade e nenhuma deserção. Sob um céu de tílias e cachos amarelos. Capítulos grandes e pausados: dentes-de-leão. E depois a palavra estepe, que é de origem russa. Há uma rua, três quadras acima daqui, onde eu me sentei no primeiro degrau, mais uma vez, para mais um café forte e mais um cigarro. Meu país, com sua matilha e jaqueta cáqui, tem suas litografias, seu grão-vizir e seu copo de grapefruit com canudo colorido. E essa manhã vermelha me corrompendo.

sexta-feira, 1 de março de 2013



Andei muito tempo pelos mundos intermediários, pelos bambus e leques de papel, pelas luzes baixas das lanternas dos bairros vermelhos. Tempo suficiente para descrever a escrita dos grilos, a caligrafia doce das canetas com ponta de cinzel, o lento desembainhar das espadas. Sei Shonagon era como eu deveria me chamar naquelas manhãs em que esperava ansiosamente o requeijão e o pão de trigo, para depois sentar à mesa do canto e percorrer com o dedo as asperezas da madeira que restaram incólumes. Os princípios eram os mesmo, e os dias sucediam-se quase lentos. No entanto Sei Shonagon não era o meu nome, mas demorou tanto o tempo pelos mundos intermediários que eu volto à eles com o mesmo empenho com que devolvi à mim mesma a minha primeira caligrafia. E levanto de madrugada, à espera da primeira Lua Cheia do outono.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013


Eram 9h da manhã e andei rente aos muros, na sombra. Quatro quarteirões e o corredor depois da entrada pela primeira porta. Umidade relativa do ar: 65%. Pressão atmosférica: 1020 milibares. Ao fundo: nascer do sol com ônibus. Uns livros e desfocados. E uma improvável chuva depois da janela. Identidades: 1) crisântemos e rosas na escrivaninha. A escrivaninha: meu lugar preferido. Nem sempre o mais assíduo, apenas o preferido. 2) São Paulo: seus vitrais de mercado central e suas ruas que me atravessam, fragmentadas, diariamente. Peguei os papéis e subi a rampa até o primeiro andar. Mas tive muito medo. Desnecessário e inócuo. Faz dois anos, eu ia dizer, mas não tem mais importância. Dentre as várias identidades da cidade, sou a mais exposta. A que não se extingue nunca. Por isso, este sorriso e a tatuagem. A lanterna, a enfermaria, o pentagrama. Os pequenos feitiços. As coisas ilícitas e os duvidosos ganhos. O inferno submerso na minha desconfiança. Sem atenuantes. Desci a rampa até o térreo. Transitória.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013


Swok arranha a janela no meio de julho. Estou presa ao silêncio insólito da fumaça e da rua enevoada. Chocolates recheados e uma dúzia de laranjas doces. Relógios que não se movem, mas quando o fazem tocam peças de música. Milenium. Bilhetes. (Lizbeth também come pizzas congeladas em Estocolmo). Um ramo de avelãs licorosas e diabólicas biografias com intenções ficcionais. Matilhas refletem seus dentes afiados no canto do quarto. Um rio risca minha veia e vem o sussurro: um dia será abril de novo, um abril diáfano de noites ladrilhadas em azul. Um mercadejar de sedas, nozes-moscadas e narguilés. Isso se prevê ao olhar do outro lado da rua, a casa descascada e cinzenta. Se eu fosse sincera, diria que tenho saudade. Mas, não sou. Sou dissimulada, leviana e passageira.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013


É para você que escrevo, pequeno grande homem: muita chuva e um frio ocasional em São Paulo 
Poème em prose e um pijama desbotado à escrivaninha, deixando a mão percorrer histórias obscuras de cabarés & lupanares. Resista, se estiver aí. Resista, se estiver aqui.
Ainda temos o mesmo céu de amianto que te descobre e protege, que te engana e encoraja. Os outdoors caíram aos poucos e a cidade ficou mais densa. Mais febril e terna, mais veloz e desconcertante. Temos saudade de você: eu e ela.
Postais do leão de pedra da praia e das amendoeiras do jardim pregados com alfinete no mural da esquerda. As janelas das percepções. Provas tipográficas e fotos descoloridas. É para você, pequeno grande homem que escrevo agora: como num filme do demolido Astor, em que o protagonista faz anos e ganha uma caixa de madeira chinesa que tem um segredo para abrir. Ela está aqui, agora: abra-a.
E seja, com parcimônia e leviandade, feliz.

domingo, 13 de janeiro de 2013


Afora isso, faço colagens em uma caderneta sóbria enquanto janeiro acende sua luz de cabaré & tangos depois do vidro ácido de permanências inúteis. Ponho meu pijama mais cheio de cetins e uma flauta emerge dos seus fios. Uma folha de chá cai descuidada sobre o chão moldado a espinho, e eu a pego com complacência e ternura. É assim o sábado que antecede o sono: mais um calendário com dias riscados e durex preso nas pontas, uma fita vermelha e papel laminado. Desejo que você volte a escrever.Tem continentes inteiros submersos e não esqueça: te espero ali, na área de fumantes, dragão chinês pintado a mão. Frio, a mandrágora no canto e o moinho de roda movido a água.
Retorne. Assim, ao pé da letra.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012



Temperatura: alta para uma noite de novembro. Chocolate: Laka, branco. Lembrança: o ano passado, pela primeira vez, sentada no ambulatório. Trem: litorina das 22h com destino a Campinas, com paradas em Jundiaí e Valinhos. (o nome se deve ao fato de Mussolini ter viajado para Littoria numa dessas locomotivas a diesel). Ladeira: a do templo da rua São Joaquim: o coração de Buda. Descanso: a cerimônia do chá. Retorno: um dia, ao leão de pedra do Gonzaga. Insinuação: blusa rosa de seda com botões de madrepérola num tom de rosa mais claro. Escrito isso, fecho o diário. Quero algumas borboletas sobrevoando o teto do meu quarto e apêndices rabiscados nas obras completas de Tchekhov. Herdei um arquivo, uma bolsa de couro desgastada, grãos de milho para plantio e um broche de prata. Um espelho trafegava pelo meu rosto em ondas curtas. Sonoro e viável.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012


O demônio preso no anel, o demônio preso no espelho, o demônio preso na garrafa. O metal e o vidro. A hulha e a revolução de 1750, a máquina a vapor. As tentações subalternas, que subiam até nós, o calor de outono, o calor de outubro, as cigarras transparentes, a peste negra, os olhos indóceis e as ruas difíceis, de paralelepípedos soltos e cigarros apagados no meio-fio. A disciplina das dissertações sobre a força motriz do tar mecânico. O cenário do Morro dos Ventos Uivantes. Era assim que se morria nos romances ingleses. E assim ouvia-se um desafinado violino numa casa por onde se descia dois degraus até chegar a sala.

segunda-feira, 11 de junho de 2012


Mandrágoras, escorpiões lentos, espíritos de pequenas corujas que se foram: noctâmbulas e traídas. Assim eu descrevia os olhos que me acompanhavam pelas ruas. Uma garoa antiga & álacre alojou-se nos meus cílios. Depois disso as escritas banhadas a prata com uma camada de ródio por cima: pequenas e espessas, quase imperceptíveis. As anotações ao pé da página apontavam para cartas náuticas sem as latitudes e longitudes: os portulanos. Com seus olhos grandes e azuis, você ocupou um espaço a mais sábado de madrugada: a sala ficou pequena e impensável, e nela mal cabia minha tradução de desejo sob o frio de junho. — Anote o meu celular, você disse há um ano, e eu nem lembro porquê.

sexta-feira, 25 de maio de 2012


(para Ivan Mantchev, na noite em que ele saiu de casa)

Chove. Às três da madrugada chove sobre mim, sobre você, sobre a ilha que te sustenta a veia e a vida. Chove inexplicavelmente sobre o sol e sobre o sal das nossas pequenas e anônimas circunstâncias. Sobre a nossa sombra na rua que tem uma subida e é feita de paralelepípedos. Sobre os cães que não tivemos, mas que chamamos alto, em outras madrugadas, assobiando ou gritando seus nomes. Chove sobre o aço do meu anel, que ganhei enquanto dormia e sobre a faca afiada que permaneceu na sua sala. E, ao final, ambas as coisas foram uma ilusão: anel e faca. Só existia mesmo a sua voz através do barulho da Ilha, as ondas relapsas, rebentando na costeira, a sua casa de palha e sinopses, a sua voz de areia e lapis-lazúli. Poderia ter sido na Polinésia, onde Valéry descansou em uma cadeira de espaldar alto, mas foi aqui. Para onde você foi, abandonando a avenida que te percorria e as luzes do centro da cidade que te marcavam o corpo, e onde eu fiquei, com as avenidas e luzes. Por isso chove aqui, agora, nesta madrugada de lobos perturbadores, gotas de absinto escorrendo do tinteiro e selos com o carimbo borrado em envelopes amarelados. Chove sobre a sua pressa e a minha permanência. Você saiu, esqueceu de trancar a porta e fechar as janelas. De desligar o celular e fechar sua conta de mail. De fazer uma última reverência a Oxóssi, de tirar a torradeira da tomada, e de empilhar pratos e garfos na pia da cozinha. Você saiu e saiu, e mais uma vez, saiu. Com aquele jeito de andar meio de lado e as mãos no bolso. Esqueceu a bicicleta, acho.

domingo, 18 de março de 2012


Bilhetes que escrevi ao longo do tempo. Papéis azuis e gaivotas em rasantes. A névoa que vinha do mar e cobria o continente, cegando os capitães dos navios. Desenhos de amuradas fantasmas e mochilas cor de laca sobre as costas. Partir era assim. Tal a quantidade de cavalos-marinhos.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012


Gatos, como eu, molhados de chuva e riscados de hulha. Moedas enferrujadas, parafusos e becos cheios de poças d´água. A morte falsa de Valéry. Meus olhos incendeiam os pedaços escuros da lua e se vão amiúde. São mais que olhos: são pequenos enredos que desaparecem em vielas. Nasci numa noite de outono e era o século XX. Já fazia frio e o busto de Álvares de Azevedo já tinha sido erguido. Já havia as piteiras de osso e as caixas de laca. Os doces sírios. Demônios azuis e castanheiros enevoados. Rock e saxofone, mauser exposta no armário. Meu coração mercadejava alguns abraços com os gatos em que eu me transformaria.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011


Um coração de chocolate da Kopenhagen, um cd com sonatinas e um vidro de Kenzo: flower.  Um boneco de neve de feltro, cenoura no nariz e capuz verde. Uma noite fria de sopa de mandioquinha e pães. Sempre esteve escrito para mim, eu me lembro. Luzes embaçadas e a forma oblíqua dos sentimentos: castanhas cozidas e nozes. Lá longe, depois das janelas dos prédios vizinhos, brilha uma árvore colorida.